2019-03-26
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14-03-2019 - utilização de telemóvel em modo voo durante voo comercial

 

por: Guilherme Almeida Craveiro & Mariana Monteiro de Magalhães

O presente Acórdão é referente à decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, cujo tema em discussão foi o de saber se a utilização de telemóvel em modo voo, por um passageiro, para ouvir música, durante um voo comercial Lisboa-Funchal a 23 de junho de 2013, consubstancia ou não uma contraordenação.

 

Inicialmente, a decisão do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, 1.° Juízo,  foi no sentido de absolvição do Recorrente (o passageiro). Seguidamente, a decisão foi objeto de Recurso pelo Ministério Público para o Tribunal da Relação de Lisboa.

 

O ponto fulcral do presente Acórdão, foi a análise feita pelo Tribunal, para a questão de saber se a conduta do Arguido consubstancia ou não o ilícito previsto na al. d) do n.º 1 do art. 5.º do Decreto-Lei n.º 254/2003 de 18/10 (utilização de telemóvel a bordo de uma aeronave civil em voo comercial, quando tal seja proibido).

 

A fundamentação que motivou o recurso, foi a primeira decisão judicial de que o Arguido não praticou uma infração, uma vez que no inicio do voo a tripulação não comunicou qualquer proibição para a o uso de aparelhos de reprodução de música a bordo, além de que “a função “telemóvel" do Arguido esteve sempre desligada, encontrando-se o equipamento em "modo voo"; subsidiariamente, a conduta do Arguido não pode ser qualificada a título de dolo direto, dado que nunca foi intenção deste violar uma ordem de proibição da tripulação.”.

 

A fundamentação, seguida pelo Tribunal, no sentido de absolver o Arguido, foi a de que as instruções do fabricante do avião (Fokker) são de 2002 e estipulavam que os telemóveis e outros equipamentos de transmissão não podiam ser utilizados e tinham de ser desligados desde o fecho de portas até que as mesmas fossem abertas para o desembarque. No entanto, desde então, os telemóveis já evoluíram muito, inclusive, os mesmos dispõem da modalidade “modo voo”. Nesse sentido, os telemóveis atualmente têm muitas mais funções do que as chamadas e o envio e receção de SMS. Concluindo que “A mera referência genérica a "telemóvel", nas instruções genéricas do fabricante não reflete essa complexidade, pelo que da mesma não se pode retirar, sem mais, a aptidão da utilização de um telemóvel em modo voo para perturbar o bom funcionamento dos sistemas e do equipamento do avião.”

 

Em sentido diverso, no entendimento do Ministério Público uma interpretação feita de acordo com a que fez o Tribunal, implicaria que em todos os voos, as respetivas tripulações tivessem de avaliar caso a caso as especificidades de cada telemóvel dos passageiros, de modo a fazerem um juízo técnico sobre a possibilidade ou não de cada um dos telemóveis interferirem com os sistemas do avião. Nesse sentido, tal solução seria inexequível. Pelo que, “só é exigível que a tripulação faça tal comunicação aos passageiros e que, em caso de não acatamento da proibição, interpele o(s) passageiro(s) instando-os ao cumprimento. Por seu turno, os passageiros — independentemente da sua opinião pessoal e/ou dos seus alegados conhecimentos técnicos acerca dos seus telemóveis e da aeronave em que se façam transportar — têm de respeitar escrupulosamente os termos da proibição. (...) Atentos os termos do aviso comunicado pela tripulação ["Verifique, por favor, se o seu telemóvel está desligado, não podia o arguido deixar de perceber algo tão singelamente simples: desligar o telemóvel é desligá-lo, e, não apenas bloquear algumas das suas funções. E, apesar de ter percebido o que era claro, o arguido — fiando-se nos seus alegados conhecimentos técnicos - quis ceder a um capricho seu: ouvir música a partir do seu telemóvel, só o desligando depois de diretamente interpelado.”

Os passageiros não podem ter a liberdade de minimizar a importância das instruções do fabricante, sem que haja qualquer prova pericial em sentido diverso, com base na ideia da “evolução dos telemóveis”.

 

Em face dos termos do aviso comunicado pela tripulação ["Verifique, por favor, se o seu telemóvel está desligado"], o arguido, na posição de homem médio, não poderia deixar de perceber que desligar o telemóvel não é simplesmente bloquear algumas das suas funções.

 

No mesmo sentido, pronunciou-se a Autoridade Nacional da Aviação Civil, que afirmou que a proibição em questão tem como objetivo assegurar a segurança aérea, pelo que a proibição do uso do telemóvel é consagrada de modo a garantir a segurança de todos os passageiros e tripulação do voo.

 

De acordo com o art. 5º do Decreto-Lei 254/2003 de 18 de Outubro constitui contra-ordenação muito grave “utilizar telemóvel ou qualquer outro mecanismo electrónico a bordo de uma aeronave civil em voo comercial, quando tal seja proibido.”

Tal ação consubstancia um ilícito de perigo abstracto. Neste tipo de ilícito "o perigo não é elemento do tipo, mas simplesmente motivo da proibição. Quer dizer, neste tipo de crimes são tipificados certos comportamentos em nome da sua perigosidade típica para um bem jurídico, mas sem que ela necessite de ser comprovada no caso concreto: há como uma presunção inelidível de perigo e, por isso, a conduta do agente é punida independentemente de ter criado ou não um perigo efectivo para o bem jurídico.

 

No caso de um tipo de perigo abstrato não se pressupõe a demonstração da existência de um perigo concreto/real, neste caso a segurança aeronáutica. Assim, para que se preencha o tipo legal in casu, basta que o passageiro use o dispositivo eletrónico cujo uso se encontra proibido, neste caso o telemóvel, a bordo da aeronave civil, em voo comercial, conduta em si já de tal modo gravosa tendo em conta os riscos que podem advir da mesma, que não se torna necessário que, efetivamente, o passageiro ponha em perigo a segurança da aeronave, os seus ocupantes ou bens.

 

Em face da fundamentação exposta supra, o Tribunal considerou adequado e suficiente aplicar a coima no valor de € 2.000,00.

 

 

Aviso Legal: A presente Informação destina-se a ser distribuída entre Clientes e Colegas e a informação nela contida é prestada de forma geral e abstrata, não devendo servir de base para qualquer tomada de decisão sem assistência profissional qualificada e dirigida ao caso concreto. O conteúdo desta Informação não pode ser reproduzido, no seu todo ou em parte, sem a expressa autorização do editor. Caso deseje obter esclarecimentos adicionais sobre este assunto contacte-nos através do endereço de e-mail: abclegal@abclegal.com.pt