Foi publicado no Jornal Oficial da União Europeia, no passado dia 9 de Março de 2018, o Regulamento Delegado (UE) 2018/344 da Comissão, de 14 de Novembro de 2017 (doravante designado apenas por RDUE).
O RDUE vem complementar a Diretiva 2014/59/UE do Parlamento Europeu e do Conselho no que diz respeito às normas técnicas de regulamentação que especificam os critérios relativos às metodologias de avaliação da diferença de tratamento no âmbito de um processo de resolução e entrará em vigor no próximo dia 20 de Abril de 2018.
Em termos práticos, o presente RDUE vem dar força de Regulamento a orientações previamente desenvolvidas pela Autoridade Bancária Europeia (EBA), tendo em vista a determinação da metodologia a ser seguida no âmbito da avaliação no creditor worse off.
Antes de abordarmos as medidas adotadas no RDUE, importa fazer um enquadramento prévio da avaliação cuja metodologia agora se institui.
- A avaliação no creditor worse off
Desde o início da crise financeira de 2008 até à presente data, foram vários os exemplos de “hecatombe” de instituições financeiras.
Muitas dessas instituições financeiras tiveram de ser objeto de apoios públicos com vista ao robustecimento do seu capital e liquidez, por forma a garantir a continuidade dos seus serviços bancários, a confiança sistémica e o apoio à economia.
Contudo, no universo de instituições financeiras fragilizadas, em alguns casos, verificou-se não existir viabilidade na sua preservação.
Relativamente a estas últimas instituições, verificada a situação de insolvência ou de insolvência iminente, não existiam alternativas à utilização do processo de insolvência almejando a liquidação das mesmas.
Contudo, os processos de insolvência não são, por regra geral, vocacionados para a liquidação das instituições financeiras, entre outros, pelos seguintes motivos:
- São demasiado complexos;
- São demasiado lentos;
- São demasiado onerosos;
- Não foram concebidos para Instituições com impacto social equiparável a um Banco;
- Induzem a desvalorização dos ativos vendidos em liquidação;
- Não protegem o sistema do chamado efeito sistémico ou de contágio (a perda de confiança no sistema financeiro que poderá alastrar-se a outras instituições e potenciar a chamada “corrida aos depósitos”);
- Geram perdas significativas para privados que não tiveram intervenção na gestão da instituição (designadamente os depositantes e credores seniores);
- Geram perdas significativas para o Estado (indiretamente através das empresas publicas e instituições publicas que têm perdas com a liquidação da instituição financeira em causa).
Atendendo às dificuldades resultantes da aplicação dos regimes jurídicos de insolvência, designadamente para evitar o efeito sistémico que a débacle de um Banco provoca, os Estados foram optando por “nacionalizar” as Instituições Financeiras, cobrindo as perdas daí resultantes. Mas esta senda trouxe consigo prejuízos que foram sendo suportados pelos contribuintes, com os inerentes efeitos sociais particularmente gravosos.
Assim, tornou-se premente encontrar alternativas que permitissem o encerramento ordeiro das instituições financeiras inviáveis e que acautelassem os problemas originados pelas alternativas referenciadas.
Foi neste contexto e enquadramento, que foram desenvolvidas, pela União Europeia e adotadas pelos Estados Membros, as medidas de resolução. Estas medidas permitem encerrar ordeiramente as instituições financeiras, impedindo a perda de valor, prejuízos avultados para os credores e o efeito sistémico daí resultante.
Sem prejuízo da panóplia de medidas preventivas e resolutivas existentes, poderemos destacar as seguintes:
- Venda total ou parcial da instituição: Passa pela aquisição da atividade da instituição financeira resolvida por outra instituição. Quando a aquisição é parcial, procura-se alienar os melhores ativos (os mais valorizados) e todos os depósitos da instituição. Nesta circunstância, a parte da atividade da instituição que não é vendida, será objeto de liquidação utilizando o regime jurídico previsto para as insolvências;
- Criação de um Banco de Transição: Visa a transferência do Core da instituição (geralmente a atividade bancária de retalho) através da sua integração num Banco de Transição (bridge bank) controlado pela autoridade de resolução. O Banco de Transição tem, em regra, um período de vida limitado (até cinco anos) e tem por destino último a sua venda;
- Segregação de ativos: Permite-se que os ativos tóxicos de determinada instituição (os ativos de rentabilidade nula ou reduzida) passem para um veículo público de gestão de ativos com vista à sua alienação alienados;
- Recapitalização interna (“Bail-in”): Possibilidade de reestruturar o passivo de uma instituição em dificuldades através da redução do valor contabilístico das suas dívidas não garantidas (“write-down”) e/ou convertendo-as em capital próprio. No fundo, utiliza-se o dinheiro dos acionistas e credores para absorver as perdas.
Contudo, a aplicação indiscriminada das medidas de resolução poderá igualmente gerar efeitos perniciosos. Com efeito, ao recapitalizar internamente a instituição, poderão reduzir-se ou eliminar-se alguns créditos. De igual forma, ao vender a atividade poderá obter-se um valor de venda inferior ao que seria obtido num cenário de liquidação.
Deste modo, a par da consagração das medidas de resolução, veio consagrar-se um princípio angular em todo o regime, o princípio do “no creditor worse off”.
Segundo este princípio, nenhum credor da instituição poderá ficar numa posição pior do que a aquela em que ficaria num cenário de liquidação por via da insolvência. No fundo, impede-se que as perdas suportadas pelos credores sejam superiores às que resultariam do desfecho do produto da liquidação (venda) num cenário de insolvência.
Verificando-se a violação deste princípio, os credores terão direito a receber da autoridade de resolução o diferencial do valor obtido (se obtido) e do que expectavelmente receberiam num cenário de liquidação.
Ora, para se apurar se foi, ou não, violado o principio no creditor worse off, a lei prevê que deverá ser realizada uma avaliação por uma entidade independente da autoridade de resolução e da instituição que foi objecto de medidas de resolução, que confirme, não só os pressupostos da aplicação das medidas de resolução, mas também quais os fluxos financeiros esperados se se tivesse optado por um cenário alternativo de liquidação.
- A metodologia introduzida pelo RDUE
Conforme explicámos, o RDUE vem determinar a metodologia aplicável para a realização da avaliação do cumprimento do princípio no creditor worse off.
Antes de mais, esclarece o RDUE que a avaliação deverá basear-se apenas nas informações sobre factos e circunstâncias que existiam e podiam razoavelmente ser conhecidos na data da decisão. Este é um pressuposto basilar para a realização desta análise, porquanto o objetivo será o avaliador colocar-se nas vestes do decisor, procurando apurar se, perante as circunstâncias existentes na data da adoção das medidas de resolução, deveria ter agido de modo diferenciado.
Estabelece ainda o RDUE que o avaliador deverá estabelecer um inventário de todos os ativos identificáveis e contingentes detidos pela entidade resolvida. O objetivo do referido inventário é possibilitar ao avaliador o conhecimento de todo o ativo e passivo da instituição financeira, por forma a poder avaliá-lo e determinar o seu valor no cenário de liquidação.
Por outro lado estabelecem-se as seguintes etapas a seguir na realização da avaliação:
- Determinar qual o tratamento que os acionistas e credores teriam recebido num cenário alternativo de liquidação em processo de insolvência (seguindo as normas aplicáveis para graduação dos créditos num cenário de insolvência) caso o mesmo fosse adotado na data de resolução, sem considerar eventuais apoios financeiros públicos extraordinários;
- Determinar o tratamento que os acionistas e credores efetivamente receberam com a aplicação das medidas de resolução;
- Apurar se o resultado do tratamento dos acionistas e credores, num cenário hipotético de insolvência, seria mais favorável do que o que efetivamente obtiveram com a aplicação das medidas de resolução.
Para efeitos da determinação do tratamento que os acionistas e credores teriam recebido num cenário alternativo de liquidação em processo de insolvência, o avaliador, entre outros aspetos, deverá:
- Determinar o montante atualizado dos fluxos de caixa esperados no âmbito de um processo normal de insolvência;
- Aplicar a legislação em vigor na data da adoção das medidas de resolução;
- Apurar e relevar os custos administrativos, de transação, de manutenção, de alienação e outros razoavelmente previsíveis que teriam sido suportados no âmbito de um processo de insolvência e os custos de financiamento;
- Ter por base informações sobre casos recentes de insolvência de entidades semelhantes;
- Apurar se a situação financeira da entidade teria afetado os valores de transação, nomeadamente através de restrições à capacidade de negociação do administrador da insolvência com os potenciais adquirentes;
- As receitas da liquidação num cenário de insolvência deverão ser distribuídas aos credores e acionistas de acordo com as regras de graduação de créditos previstas para os processos de insolvência.
Para determinação do tratamento efetivo dos acionistas e credores no âmbito da adoção das medidas de resolução, o avaliador deverá:
- Identificar todos os créditos pendentes após a aplicação da medida de resolução de recapitalização interna e das restantes medidas de resolução;
- Caso os credores e acionistas tenham recebido uma indemnização em instrumentos de capitais próprios em consequência da resolução, determinar o seu valor baseando-se na avaliação do preço de mercado com aplicação de metodologias de avaliação geralmente aceites;
- Caso os credores e acionistas tenham recebido uma indemnização em instrumentos de divida, determinar o seu tratamento efetivo tendo em conta diversos fatores como as variações dos fluxos de caixa contratuais resultantes da aplicação das medidas de resolução e a taxa de atualização relevante;
Por fim, determina o RDUE que o avaliador independente deverá apresentar à autoridade de resolução um relatório de avaliação que deverá incluir pelo menos os seguintes elementos:
- Uma síntese da avaliação, incluindo a apresentação dos intervalos de avaliação e das fontes de incerteza da avaliação;
- Uma explicação das principais metodologias e pressupostos adotados;
- Uma explicação dos motivos pelos quais a avaliação difere de outras avaliações relevantes, se for o caso.